O paradoxo da filosofia banalizante
Achilles Delari Junior (39) é psicólogo pela UFPR, mestre em Educação pela Unicamp, na área de concentração "Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte". Afastou-se da vida acadêmica e busca estabelecer contatos com pessoas interessadas em temas relativos à Psicologia, à Linguagem e à Ética, sobretudo a partir de contribuições de Mikhail Mikhailovitch Bakhtin e Lev Semionovitch Vigotski.
Parece incrível que a filosofia, cuja função primeira sempre foi lançar um olhar de estranhamento e admiração àquilo que a repetição nos fez passar a ver como banal, num malabarismo midiático, possa prestar-se à prática inversa: banalizar temas sutis, complexos, polimorfos, de difícil compreensão. Mas isso acontece, como no blog de um professor de São Paulo, Paulo Ghiraldelli Junior, em seu texto “Depressão e Filosofia”, de 29 de outubro de 2008. Ali vemos definições indiscriminadas e preconceituosas para o que se diz serem “os depressivos”. Esse autor, em nome da filosofia, que poderia desarticular dispositivos simbólicos do preconceito, mais os hipostasiou, deu a eles estatuto de existência concreta – recurso discursivo mais adequado à alienação que ao esclarecimento. Ele inicia dizendo:
“O que pode fazer você feliz? Você sabe o que é ser feliz? Algumas pessoas sabem, mas muitas não sabem, mesmo tendo tudo para não se preocuparem. Estas últimas são os chamados genericamente de “depressivos”. Tudo pode dar certo na vida dessas pessoas, mas elas não conseguem curtir o êxito, elas estão sempre “de baixo astral”.”
“Depressivo”, até aqui corretamente entre aspas, não poderia ser alguém com depressão, como mal ao qual nos cabe ajudar, senão a curar, ao menos a minimizar com recursos sociais disponíveis para promoção de saúde. Parece falar-se de algo diverso. Chama-se de “depressivo” alguém que por vontade ignora o que é ser feliz, mesmo já sendo! Sua vida é perfeita e não consegue ou, pior, “não quer” admitir... Alguém sem preocupação que, por capricho, simula um “baixo astral” para com isso ganhar mais benefícios do que já tem, mesmo tendo tudo. Alguém muito ambicioso, deduz-se. O autor pinta tal quadro surreal. Retrata um “mentiroso” com o gosto excêntrico de dizer não estar bem, ainda que com tudo maravilhoso, mesmo num mundo em que o status de “levar vantagem” é tão cultivado. Conhecemos tantas pessoas com descrição tão curiosa? A elas nomearíamos “depressivas”? A todos os nossos conhecidos que sofrem com depressão atribuiríamos tais características tão pitorescas?
Talvez ele não falasse de depressão, e usasse a palavra só por falta de conhecimento crítico de seus significados. Poderia ser uma “metáfora” – já que usa “aspas”. Antes fosse, embora saibamos, desde a filosofia da linguagem de Bakhtin, que a eleição de uma palavra não é aleatória e envolve compromisso ético de quem enuncia, marcando ainda uma posição de classe na arena de lutas do signo. Mas quem lê até o final vê a reposição dos preconceitos, em tom sarcástico, apelativo, mal dirigido, atacando um interlocutor indefinido e abstrato, sem levar em conta uma audiência social concreta, historicamente situada, como a de pessoas que de fato enfrentam a depressão e não coincidem com a ficção caricata criada pela mente do autor. Dispensando possíveis alianças dialógicas, ele omite a polissemia, contradições e nuances do tema, torna-o unidimensional, monológico:
“Mas, não se esqueçam: a depressão crônica faz de você aquele que adora ser cuidado, então, quando algo pode tirar você da infelicidade, isso, não raro, pode lhe meter medo. E sabemos bem esta verdade: não são poucos os depressivos que diante da possibilidade de uma cura rápida preferem nem ouvir falar nisso. Ficar feliz é tudo que não querem, pois a infelicidade já teria se transformado em uma propriedade querida, um bem, uma vocação. E ninguém quer perder um bem ou uma vocação. Tirar a depressão de um deprimido crônico pode significar para ele devolver-lhe a liberdade, e uma boa parte de nós teme a liberdade.”
As aspas caem no final e não é que “mude de posição” para uma “mais literal” que a anterior, só repete mais intensamente o preconceito já posto, no qual as pessoas com depressão não sofrem qualquer mal que lhes tire a saúde, que lhes impeça de viver bem. Ao contrário, apresenta a hipótese de que o “deprimido” é um infeliz voluntário e interesseiro que só se beneficia do mal que diz acometê-lo. Um mal que sequer existiria, pela retórica estrategicamente áspera de Ghiraldelli. Marca-se uma versão relativista da dor humana, tomada como pura superestrutura simbólica acrescida, no suposto caso, de alta dose de perversão ou má fé, sobre as quais recai o juízo moral do autor: “pessoas depressivas têm medo da liberdade”. Juízo moral, pois supõe que ser livre é possível nesta sociedade, só não é quem tem má vontade. O medo, ademais, só pode estar aí como vício e fraqueza, jamais força ou virtude, sequer contingência ou defesa, portanto se o condena. Em suma, nesta versão: “depressão não existe”, é só um capricho de quem “diz” tê-la. Como o de um político ou intelectual que diz haver “liberdade” e “democracia” para se favorecer da ilusão que isso cria, mesmo que elas inexistam aqui.
Tanto é dúbia a liberdade da qual o autor diz ter medo o “depressivo”, que minha crítica enviada ao seu texto não foi publicada, o convite ao diálogo rejeitado e o exercício da liberdade impedido por quem acusa outros de temê-la. Trata-se ali de filosofia sem diálogo, algo que sequer na Grécia aristocrática com sua “democracia” para apenas 10% da população, se concebia. Já um comentário de Thiago Leite Ribeiro, imitando a retórica simplista do texto, foi bem aceito. Este repôs, sem crítica, a noção de o “depressivo” só não sair de sua condição por “gostar dela”... Mas se o “depressivo” não gosta de ouvir o que contrarie sua “falsa crença de que sofre”, também o moderador do blog não gosta de ouvir contestação, censurando, silenciando, apagando o diferente. O “gostar” do “depressivo” é posto tacitamente como moralmente inferior ao “gostar” do moderador, que condena um vício no outro, mas não o mesmo vício em si: permanecer no mesmo lugar. Nisso o conteúdo moralista de “Depressão e Filosofia”: a culpabilização individual da doença. Abstraem-se suas causas psicossociais, ignoram-se seus componentes genético-moleculares complexos e nem se cogita a dinâmica da integração dialética desses determinantes, como é típico da ideologia liberal pequeno-burguesa mais conservadora: “quem sofre é o único culpado por sua dor”, “cada um tem o sofrimento que merece”.
A mimese de Ribeiro ainda equipara depressão e tristeza - algo bem freqüente no senso comum. Mas sabe-se: “depressão não é o contrário de alegria, é o contrário de disposição”. Depressão não é o mesmo que tristeza. Alguém pode estar triste e ainda manter disposição para suas atividades, mesmo carecendo de sentido em dado momento, por algum motivo. Daí a dificuldade de quem ignora o quadro em conceber que alguém profundamente indisposto e apático não tenha ânimo para sair da situação por si, o que seria paradoxal. Ou nos omitimos e aguardamos que a indisposição recue – com o tempo, como que por um ciclo biológico, uma maré. Ou algo se faz para intervir -– com a medicina, psicologia ou a filosofia com seus phármakons. Com alguma solidariedade. Sair da depressão profunda por si próprio seria como uma aventura do Barão de Münchausen. Mas estar preso é cômodo? À falta de apetite? Às dores no corpo? À ausência de libido? À insônia? Ao vazio? À ideação suicida? Ao auto e hétero moralismo recorrentes? Aos efeitos adversos dos remédios? É cômodo? É gostoso? O sincretismo aplicado por Paulo e Thiago, seu uso indiscriminado de palavras que cobrem situações bem diferentes e até antagônicas, não contribui para um pensamento crítico. Quem é esse “depressivo” de que se fala? O que realmente se está chamando de “depressivo”, como se isso se aplicasse a tudo que está sob tal signo? Os pretensos críticos aqui só corroboram preconceitos muitíssimo enraizados no senso comum, no conservadorismo, aos quais antes caberia à consciência filosófica superar.
É de admirar que leitores de um blog tão consultado, diante da gravidade da situação, não se manifestem contra ela. Contudo, sabendo que as posições divergentes não são ali publicadas, não havendo liberdade de expressão, a admiração se dissolve. Ali não há o que admirar. Justo num campo em que antes deveríamos aprender a nos admirar com o mundo tido como banal, acabase por banalizar o que poderia ser objeto de admiração e reflexão crítica: a dor humana e a luta do homem contra ela, suas contradições, seu sucumbir, suas esperanças e aspirações. Se pessoas que realmente sofrem com a depressão e lutam contra ela podem sim cultivar ou manter uma vontade de alegria espinosiana, de compor mais com o mundo, de estabelecer alianças com os outros em busca de um bem comum, mesmo que no contraponto e na adversidade, não será por conta das colocações infelizes, tristonhas, de tal “filosofia” banalizante, mas apesar dela e justamente contra ela.
Postado por Achilles Delari Junior às Marcadores: banalização, depressão e filosofia, Ghiraldelli, moralismo, preconceito, simplismo
Esta matéria saiu também em
A Tribuna do Povo, Umuarama, sexta-feira, 07 de novembro de 2008.
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